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Poder Moderador
Poder Moderador

Poder Moderador

(por Maynard Marques de Santa Rosa)

A interpretação da História, feita pelo renomado jurista Raymundo Faoro, em sua obra Os Donos do Poder, traz uma contribuição inestimável à compreensão do cenário presente. Sobre o conturbado período regencial, diz ele, na pág. 347, que o Exército, ressentido com a assistência negligente prestada pelo grupo dominante nas jornadas do Prata, apoiou o movimento que levou à abdicação de Pedro I, em 7 de abril de 1831. Seu líder, o brigadeiro Francisco Lima e Silva, assumiu como parte da Regência Trina Provisória e lá permaneceu durante três anos, até o golpe do Ato Adicional de 1834, urdido pelo Partido Liberal, que substituiu a Regência Trina Permanente por Feijó, como regente uno, e extinguiu o Conselho de Estado, para invalidar o Poder Moderador.

A realidade do poder desmascarou a utopia dos liberais, que passaram a governar com a mesma empáfia dos conservadores. O pavor da influência militar fez Feijó excluir o Exército das decisões políticas e desarmá-lo, além de criar a guarda nacional, como “nação em armas”, para substituí-lo na Defesa interna. A profissão militar, de acordo com os preconceitos liberais do tempo, servia à destruição, à barbárie institucionalizada, equiparado o oficial ao parasita” (pág. 536).

            O efeito disruptivo da imprevidência liberal pipocou, logo depois, nas revoltas que ameaçaram desintegrar o país: a Cabanada (1832), a Farroupilha (1835), a Cabanagem (1835), a Sabinada (1837) e a Balaiada (1838). A impotência da Guarda Nacional, que jamais passou de milícia a serviço das elites dominantes, obrigou o governo a recorrer ao Exército, para restabelecer a ordem.  

O clima convulsionado enfraqueceu os liberais. Feijó renunciou em 1837, sendo substituído por Araújo Lima, do Partido Conservador. Em 12 de maio de 1840, foi aprovada a Lei de Interpretação do Ato Adicional de 1834, restaurando o Conselho de Estado e com ele o Poder Moderador. Os liberais tentaram reagir, com o chamado “Golpe da Maioridade”, no dia 23 de julho de 1840, que declarou a maioridade de D. Pedro II, antes que completasse 14 anos de idade, mas o Imperador assumiu o Poder Moderador e passou a exercê-lo plenamente, durante 49 anos.

No início da Guerra do Paraguai, o gabinete liberal concordou em subordinar as forças brasileiras ao presidente argentino Bartolomé Mitre. Porém, após o desastre de Curupaiti, em 22 de setembro de 1866, os generais brasileiros recusaram-se a prosseguir sob o comando de um estrangeiro. O governo teve de aceitar as condições impostas pelo Marquês de Caxias, e o Imperador o nomeou comandante-em-chefe das Forças Armadas brasileiras em operações.

O desgaste pela longa duração da guerra afetou o apoio ao Exército. A Guarda Nacional não atendeu à meta dos efetivos, forçando o recrutamento de escravos como voluntários da Pátria. Caxias enfrentou críticas na Corte. Em fevereiro de 1868, ele pediu demissão, que foi recusada: “Com este ministro, eu não volto”. O Imperador apoiou o general e substituiu o gabinete de Zacarias de Góis pelo do Visconde de Itaboraí, e o partido conservador permaneceu no poder até 1875.

A década de 1880 encontra o Exército coeso, animicamente estruturado em valores tradicionais, mitificados em Caxias. A guerra vertera sobre a corporação uma auréola de prestígio, revertendo a decepção da campanha cisplatina” (pág. 542). O ideal republicano, acalentado na Convenção de Itu (1873), fora concretizado pela espada positivista sem o concurso do povo. Proclamada a República, em 1889, apagou-se o simbolismo do Imperador, mas não o arquétipo Moderador: “O odiado Poder Moderador encarnar-se-á, sem quebra da continuidade, em Deodoro e Floriano” (pág. 607).

A reação civilista ao ato de 15 de novembro de 1889 replicou os efeitos do 7 de abril de 1831. Iniciada com Prudente de Morais, consolidou-se com Campos Sales sob a forma federalista e culminou na “política dos governadores”, como contraponto ao centralismo militar.

O espírito de corpo afloraria durante a campanha civilista (1910), que terminou com a eleição do marechal Hermes da Fonseca. Passado o ciclo Hermes, ressurgiu o preconceito antimilitar. Epitácio Pessoa, encarnando o espírito das oligarquias, afirmou: “O Exército não é a nação, nem é tutor da nação”. Mas nem mesmo a eficiência do ministro Calógeras foi capaz de aplacar a vontade dos “tenentes”. Na madrugada de 5 de julho de 1922, já eleito Artur Bernardes, os disparos do Forte de Copacabana antecipavam o fim da República Velha.

Na nova ordem implantada pela Revolução de 1930, “O Exército não se deixou seduzir pelo fascismo – como aconteceu com os exércitos italiano e alemão –, graças ao repúdio à teoria da obediência passiva” (pág. 778). O protagonismo militar institucionalizou-se no Conselho de Segurança Nacional, pela Constituição de 1934, porém, sujeito à diretriz do general Góes Monteiro: “Garantir e nunca tutelar o povo e as instituições”.

Durante a ditadura, “O Exército guardou, coerentemente, a fidelidade ao modelo moderador, cobrindo o vácuo institucional que a sociedade, e não as leis, criou no sistema político” (pág. 779). O retorno vitorioso da FEB, em 1945, ressuscitou o ideário sufocado pela repressão do Estado Novo. De nada serviu a desmobilização automática das unidades. No dia 29 de outubro de 1945, Getúlio foi deposto pelos mesmos chefes que lhe avalizaram o golpe de 1937.

A República Nova foi encabeçada pelo ex-ministro da Guerra, general Eurico Gaspar Dutra. O retorno de Vargas pelo voto, em 1950, potencializou velhas pressões, precipitando o desfecho de 1954 e abrindo o ciclo de turbulências que extinguiu a Constituição liberal de 1946.

A geração tenentista dos generais de 1964 legou os padrões disciplinares, anímicos e de eficiência hoje ostentados pela tropa brasileira no contexto das operações internacionais de Paz. A nova geração militar formou-se sob o signo da legalidade, superou o messianismo positivista e tornou-se pragmática.

Contudo, a maturidade conquistada pelas Forças Armadas em seu processo evolutivo não obteve contrapartida do estamento político. A Constituinte de 1988, ao ecoar a influência estrangeira, levou-as ao isolamento, por extinção das prerrogativas do Conselho de Segurança Nacional e introdução de preceitos adversos à cultura castrense. O governo FHC implantou o ministério da Defesa sob a receita preconceituosa de Samuel Huntington: “a chave do cofre e a caneta em mãos civis”. Os governos petistas apegam-se, pura e simplesmente, ao seu projeto de poder, nutrindo forte prevenção contra o estamento militar. Sobre isso, Faoro conclui: “Reduzir o Exército, depois de gerado do flanco da camada dominante, a um grupo profissional mal remunerado e destituído de missão política, não seria mais possível” (pág. 540).

O substrato de Os Donos do Poder é o papel do patrimonialismo atávico do estamento burocrático que, como parasita, impregna as instituições nacionais, bloqueando o progresso, para se perpetuar no poder.

A vigilância militar tem o poder de dissuadir os abusos políticos; sua ausência pode reeditar no presente um cenário semelhante ao do período regencial. A simples omissão já cria um vácuo de poder a ser ocupado, rapidamente, por oportunistas dos três Poderes da República.

Neste contexto, merece atenção o comentário do Barão de Guajará, ao relatar a tragédia da Cabanagem, que consumiu 30 mil vidas: “Nada há mais perigoso para a ordem pública do que o espírito de partido inoculado na força militar” (Motins Políticos, II Tomo, pág. 209).

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