Por Márcio Roberto Amaro*
Até que ponto precisamos retroceder em nossa análise para termos a perfeita compreensão de determinado evento?
Em tese, a resposta é fácil: até sua origem.
Mas, se fosse simples assim, poderíamos depreender que para determinarmos com exatidão as causas e consequências profundas da Revolução Francesa seria suficiente estudarmos com afinco as complexas relações sociais estabelecidas na França do século XVIII, incluindo a extremada desigualdade imposta por um sistema ainda com características feudais, que privilegiava a manutenção do poder com base na descendência e não no mérito dos cidadãos e na capacidade de produzir riqueza.
Infelizmente, por mais dedicada que fosse a análise intelectual de tais eventos, ainda que incluísse os mínimos detalhes da conduta e personalidade de cada agente envolvido em todo o processo revolucionário, tal esforço não seria suficiente.
Toda a análise é limitada e sujeita aos valores intrínsecos e conhecimentos parciais de quem a realiza.
Inserida no longo processo de desenvolvimento humano, para se formar um juízo completo sobre o que ocorreu na Revolução Francesa, seria necessário, a priori, dominar todas as etapas desse desenvolvimento, incluindo aspectos culturais, religiosos, etnológicos, psicológicos, sociais, econômicos, militares, políticos e tantos outros que modulavam a ação de cada envolvido naquele evento histórico.
Mesmo assim, a formação do quadro seria incompleta.
O que fez com que aquele imenso grupo de pessoas chegasse àquela situação extremada de indignação? Quais as influências recebidas ao longo da História? Qual o nível de interferência causado pelo Iluminismo recente e pelo Renascimento, ocorrido séculos antes, que reduziu gradualmente a pressão religiosa sobre a sociedade moderna? Antes disso, qual a importância da decisão de Constantino, ainda no Império Romano, de se tornar a fé Cristã como religião universal, com vistas a unificar um reino dividido? Como modular nesse estudo o concerto entre Igreja e poder temporal que estabeleceu a teoria do direito divino, legando poderes inquestionáveis a soberanos por mais de mil anos?
E assim poderíamos sucessivamente retroceder na evolução social até chegarmos ao primeiro humano, aquele que ineditamente se utilizou de uma ferramenta para modificar uma situação natural que não lhe era favorável. Essa ferramenta não foi uma roda, uma manivela, uma roldana ou alavanca.
O primeiro instrumento utilizado por nossos ancestrais, que marcou a passagem para a racionalidade foi uma clava.
A ciência reconhece o uso dessa arma ancestral como o marco fundante de nosso gênero taxonômico. Em linhas gerais, a possibilidade da ação violenta inaugurou o surgimento dos humanos, sendo essa nossa peculiaridade instintiva mais marcante. Possuímos a natural capacidade de sermos violentos uns com os outros.
Assim, a possibilidade de utilizar armas para transformar a realidade foi o limite de passagem da condição irracional de nossos ancestrais símios para humanos pensantes, gênero que seria reduzido unicamente à espécie Sapiens, passados alguns milhões de anos.
Quando Marx, por exemplo, definiu de forma nada científica que o motor da História seria a luta de classes, ele deixou de considerar que dos 300 mil anos que nossa espécie vaga pela Terra, apenas nos últimos seis ou sete mil que classes sociais foram estruturadas nas sociedades sedentárias que surgiram a partir da Revolução Neolítica, caracterizada pelo surgimento da agricultura e formação de cidades.
Como é impossível à mente humana conhecer e considerar todos os eventos que percorreram os últimos milhões de anos de nossa evolução e as influências sucessivas que tiveram nos grupos humanos agimos, normalmente, como Marx: identificamos as variáveis que embasam nosso pensamento prévio, elencamos eventos com viés de confirmação, na sequência que o método científico nos impõe, e ignoramos, deliberadamente ou por desconhecimento, outros tantos eventos que tornariam nossa análise sem sentido.
Não há tarefa mais difícil do que apresentar alguma posição absolutamente irrefutável sobre qualquer assunto que envolva a natureza humana. Essa visão não é minha, mas de Edmund Burke, um dos principais pensadores ingleses e considerado o pai do conservadorismo moderno. Segundo Burke, “nada de universal pode ser racionalmente afirmado sobre qualquer assunto de natureza moral ou política”.
Burke tinha profundas reservas com Revolução Francesa. Coisa de conservador. Acreditava que os radicais revolucionários pregavam a destruição de todas as estruturas sociais, inclusive daquelas já experimentadas e aprovadas ao longo de várias gerações.
Objetivamente, nos parece que algumas considerações gerais podem ser formuladas acerca do movimento revolucionário francês de 1789 e que independem de posicionamento ideológico previamente estabelecido:
– foi uma ação de cunho absolutamente humanista, assim como a guilhotina;
– esteve primordialmente regida por pensamento igualitarista;
– teve consequências duradouras ao longo dos últimos dois séculos.
Análises mais profundas estarão sujeitas ao viés político de quem as realiza.
O aspecto humanista da revolução pode ter conotações positivas em uma primeira análise, mas está sujeito ao escrutínio pessoal de quanto se valoriza as questões transcendentes da existência.
Quando restabelecemos os princípios defendidos por Protágoras, da antiga Grécia, o qual afirmava que “O Homem é a medida de todas as coisas, das que são, enquanto são e das que não são, enquanto não são”, Deus perde considerável espaço na condução da vida humana. O processo pode ter sido lento, gradual, quase imperceptível, mas chegamos a um ponto de que, para muitos ocidentais, Deus está realmente morto, como declarou Nietzsche.
Hoje, muitas igrejas na Europa não passam de espaços turísticos, com vendas de lembranças ou mesmo transformadas em restaurantes e bares.
Fruto da revolução humanista, o Ocidente tornou-se espaço de homens de pouca fé ou, pelo menos, de poucos homens com Fé. E muitos acham isso bom. Burke, mesmo que não tivesse religião, acharia desaconselhável. Estar próximo de Deus reduz tensões sociais, ameniza a angústia humana e reduz a probabilidade do apelo ao argumento inicial da natureza humana: a violência.
A questão igualitarista, como colocada ao final do século XVIII, não parecia de todo ruim.
Reduzir desigualdades sociais e buscar equilíbrio entre os que tinham muito e os que nada possuíam foram metas presentes no imaginário de diversas sociedades, desde que os humanos passaram ao sedentarismo civilizado.
O antigo código de Hamurabi, ainda que mantivesse extremada distinção entre os direitos de senhores e escravos, já estabelecia, há 4 mil anos, alguns princípios de justiça com vista a amenizar diferenças sociais. Na república romana, dois mil anos após o rei babilônico estabelecer seu código de leis, os irmãos Graco se destacaram na tentativa de implementar um Estado mais justo, que estabelecesse proteção aos cidadãos menos favorecidos, priorizando a distribuição de grãos e terra para plantio.
Tais eventos históricos nos fornecem subsídios para concluir que existiu, ao longo da História, uma justa pressão social no sentido de impor certo equilíbrio entre ricos e pobres.
A Revolução Francesa teve o mérito de reapresentar tais demandas à modernidade e, por isso, marcou até mesmo a passagem para um novo momento da jornada humana, nos lançando à Idade Contemporânea.
Como agente fundante de nossa era, o experimento de 1789 removeu as amarras que nos ligavam ao passado opressor, representadas pela concentração de poder nas mãos de uma única autoridade, sob as bênçãos de Deus e a proteção da Santa Igreja.
O poder, a partir de então, seria laico e não mais concentrado no monarca, mas distribuído entre pessoas comuns, que fossem escolhidas para mandatos passageiros pelo povo, cujo trabalho seria origem de todos os recursos e cujas necessidades seriam foco primordial dos investimentos realizados pelas nações que se consolidavam, sob a inspiração revolucionária.
A máxima que resumiria os novos tempos seria: o Poder emana do povo e em seu nome será exercido!
Protágoras na veia da sociedade.
A inspiração revolucionária, aos olhos dos conservadores, se tornou o legado mais maléfico deixado pelos eventos que reestruturaram a política francesa e passaram a influenciar todo o mundo a partir do final do século XVIII.
O Mito Revolucionário, desenvolvido pela elite intelectual enciclopedista, com financiamento dos burgueses proto-capitalistas, foi incorporado na produção intelectual de importantes pensadores do século XIX, particularmente por Georg Hegel, que desenvolveu boa parte de sua dialética sob essa inspiração.
Hegel, por sua vez, teve forte influência sobre outros pensadores alemães do ciclo seguinte que, ainda sob o impacto revolucionário, forneceram o arcabouço teórico para a produção dos “Filhos da Revolução”, os sistemas sociopolíticos que surgiram a partir do lema revolucionário: Egalité, Fraternité et Liberté.
Egalité
É provável que os revolucionários de 1789 não ousassem pensar em uma sociedade absolutamente sem classes, onde o Estado pudesse ser suprimido, baseado na infantil esperança que os humanos chegassem a um estágio tal de desenvolvimento em que todos pudessem viver a partir da exploração máxima de suas potencialidades, em atenção às mínimas necessidades de todos. O próprio financiamento burguês e o empréstimo intelectual da elite iluminista pressupõe um desnível social evidente entre os dirigentes do movimento e aqueles que fisicamente derrubaram a Bastilha.
Contudo, o modelo revolucionário foi sendo trabalhado nas décadas seguintes, até que Karl Marx produziu o mais mortal conjunto de dogmas e suposições, como já dito, nada científicas, que fizeram com que boa parte da humanidade acreditasse que um novo tipo de ser humano seria edificado, abrindo mão de seus mais íntimos instintos, herdados daqueles símios sobre os quais também já falamos.
O conjunto da obra de Marx e de seu milionário companheiro, Engels, foi utilizado para que, durante o século XX, mais de um terço dos humanos experimentassem viver sob o jugo comunista e suas supressões de liberdade, demonstrando cabalmente que, muito antes de suprimir, o comunismo criava um Estado absolutamente opressor.
Os abusos perpetrados em todos os países onde esse sistema foi implementado, contudo, não foram evidências suficientes para que a ideia fosse absolutamente renegada, particularmente nas regiões periféricas, caracterizadas por maioria populacional com baixo nível de conhecimento e imensas demandas materiais.
Passados mais de um século e meio da publicação d’ O Capital e com um saldo de mortes de mais de 100 milhões de pessoas em decorrência da aplicação de seus conceitos, muitos ainda acreditam que o sistema absolutamente igualitarista é viável, mesmo que contrarie todas as constantes naturais do instinto, surgido a partir daquele primeiro humano que, brandindo sua clava, buscou alterar a natureza para modificá-la em seu próprio benefício.
Fraternité
A noção mais comum de fraternidade é aquela que a maioria das religiões nos passa: somos todos irmãos. Retirada a dose poética que a visão transcendental empresta a essa afirmação, ela não está de todo errada. Senão irmãos, somos todos parentes muito próximos.
A ciência demonstrou que há cerca de 74 mil anos houve uma mega catástrofe vulcânica na ilha de Sumatra, conhecida como erupção de Toba. A energia liberada por esse evento produziu efeitos que alteraram completamente a estrutura climática do planeta, impediu a chegada da energia solar, em virtude da poeira liberada na explosão, e levou à redução crítica no número de indivíduos de espécies vegetais e animais.
Nesse período, estima-se que a população humana tenha sido reduzida a poucas centenas de casais sobreviventes, provavelmente concentrados na África, dos quais, todos nós, representantes da vida inteligente na Terra, descendemos.
Por instinto e compaixão, temos a propriedade de nos identificarmos com aqueles que são próximos a nós, com os quais compartilhamos nossos traços genéticos mais evidentes no fenótipo. Quanto mais próximos, instintivamente, maior a identificação.
Essa característica foi, ao longo de milhares de anos, sendo reforçada pela evolução social dos grupos humanos que se distribuíram e sedentarizaram nas diferentes regiões do planeta.
As Cartas de Amarna, correspondências diplomáticas trocadas entre os reis do Egito Antigo e outros soberanos da região do Crescente, particularmente com os reis hititas, dão uma noção de como se desenvolviam as relações de paz e guerra há cerca de 3.500 anos.
Egípcios e hititas certamente tinham ancestrais comuns, mas o isolamento produzido pelo estabelecimento de suas cidades e reinos em diferentes regiões, o desenvolvimento de costumes próprios, e o surgimento de lideranças distintas para cada povo, faziam que o processo de identificação, ou a fraternidade, fosse muito maior entre os egípcios do que com algum hitita, e vice-versa. Dessa forma, entre egípcios e hititas, havia tempos de paz e união, mas havia também tempos de conflito e guerra.
É possível, porém pouco provável, que o ideal dos franceses de 1789 se referisse à união de todos os povos do mundo como irmãos, sem distinção de nacionalidade, religião, etnia ou qualquer outra característica complementar àquelas que moldam física ou socialmente a espécie Sapiens. Certa antecipação da visão de John Lennon.
Mas não foi assim que outro “filho” do humanismo revolucionário interpretou o tema da fraternidade.
Igualmente sob influência hegeliana e se apropriando de crenças, fantasias e preconceitos que incluíam ideias do já citado Nietzsche que, além de assassinar o Todo Poderoso, achou também que já estava no momento de se criar o Übermensch, o tal super-homem, foi edificado o ideal nazista de superioridade ariana.
A identificação racial com a ancestralidade próxima, a ideia que os “alemães puros de sangue” poderiam representar a superação da espécie e o ódio centrado em determinadas minorias étnicas, particularmente naquela que detinha boa parte do poder econômico, foram os amálgamas que levaram os seguidores de Hitler a se utilizarem dos mesmos fundamentos filosóficos que os comunistas para produzirem sua revolução.
Assim como na utopia de Marx, o nazismo também pregava a igualdade, mas não entre todos os trabalhadores do mundo, e sim exclusivamente entre aqueles que detinham o mérito racial para serem merecedores de tal distinção.
Incluía, em sua equação de poder, além da crença na supremacia étnica, a ideia de centralização da força no Estado, conduzido por uma liderança inquestionável de toda a nação, o führer.
O próprio conceito de nação extrapolava os limites territoriais e exigia dos povos subalternos o espaço vital para o exercício pleno da glória de um povo superior.
Evidentemente, faltou combinar com os russos. Também ingleses, franceses e americanos que, quando devidamente unidos, cancelaram o projeto revolucionário, não sem que antes tivesse levado à morte cerca de 85 milhões de pessoas.
Liberté
De todos os ideais inalcançáveis que compuseram o lema da Revolução Francesa a Liberdade é o mais complexo de ser abordado.
Muitas definições já foram propostas e, talvez, a melhor delas seja a citada por Hayek na obra Os Erros Fatais do Socialismo e atribuída a Adam Ferguson, que define a Liberdade não com a ausência de restrições, como a palavra poderia indicar, mas a distribuição equânime de todas as restrições consideradas justas.
A liberdade que os radicais de 1789 pregavam certamente não estava relacionada com a mesma defendida anos antes por Adam Smith em seu estudo sobre a natureza e as causas da Riqueza das Nações.
Os revolucionários desejam sua liberdade física, suprimida ou ameaçada por um soberano absoluto, cuja força coercitiva era representada, sobretudo, pela Bastilha, prisão política onde o rei mandava encarcerar todos os que desafiavam seu poder. Não foi sem motivo que o prédio que abrigava esse símbolo contra a livre manifestação foi derrubado na primeira onda de violência, que caracterizou o processo revolucionário por todo seu curso.
Se o Liberalismo defendido por Smith, Ricardo, Mill e tantos outros não é filho da Revolução, qual teria sido então o fruto enviesado dos radicais de 1789 decorrente da terceira parte do lema revolucionário?
O radicalismo libertário é esse filho desgarrado do processo revolucionário.
Da mesma forma que comunistas e nazistas, os libertários desejam ardentemente sua particular revolução, que destrua as instituições erguidas pela ação colaborativa de bilhões de indivíduos que, de forma espontânea e não organizada, deram, a cada geração, sua contribuição para que fosse edificado um mundo que, mesmo não perfeito, tem garantido a um número cada vez maior de pessoas uma vida digna e a capacidade de produzir e gozar livremente dos frutos de seu trabalho.
Enquanto os comunistas entregam o poder absoluto ao Estado visando destruí-lo a partir de um momento mágico, nunca abordado por Marx e Engels, os nazistas pretendem deixar o tal poder absoluto eternamente com o Estado e os libertários querem desde já, ou mesmo antes a supressão mágica do Estado e o retorno ao mundo da natureza, onde mandam os mais fortes ou, no estágio atual do desenvolvimento humano, mandariam os mais ricos.
Dessa forma, percebemos que o radicalismo revolucionário produziu três filhos, cuja soma resultante de suas visões sobre o Estado é igual à zero.
Talvez zero seja também a verdadeira nota que os descendentes intelectuais dos jacobinos de outrora mereçam, com seus desejos destrutivos e revoltas adolescentes.
Enquanto isso, o conservador avalia todos os ensinamentos experimentados e transmitidos pelas interações geracionais, aproveita o que for adequado, adapta o que pode ser modificado, despreza aquilo que não é mais compatível com o progresso social e segue o barco, rumo ao desenvolvimento.
* Presidente do Instituto Brasil Soberano
Excelente análise histórica sobre a evolução socioeconômica da humanidade, tendo como centro o Velho Continente. Amaro, ao ler teu artigo, de imediato meu pensamento venho ao encontro de que a evolução da sociedade ocorre a partir da coragem de homens com vontade de mudar o cenário para melhor. Há que se ter uma razão de viver para isso. Parabéns!
Maravilhoso. Aprendi mais um pouco. Uma mudança enorme está ocorrendo. Espero que a humanidade sobreviva. Se sobreviver espero que o Brasil conquiste uma posição melhor.
Sobriedade e erudição que não se vê mais no Brasil! Imaginem só o pente fino que seria necessário para encontrar algo deste valor nas universidades brasileiras de renome…
Parabéns, Coronel Marcio Amaro.
Pena que o Brasil está impedido de seguir o barco. Estamos sendo acorrentados e amordaçados em galés como escravos antigamente. E sem ter com quem contar, que tenha armas ou condição de exigir a volta a normalidade que pede nossa Constituição estuprada.