Por Márcio Roberto Amaro
As relações entre os indivíduos são complexas e exigem uma extremada dose de empatia para que possam ser mantidas em bom nível de aceitação, dentro dos parâmetros sociais estabelecidos como normais.
Quando extrapolamos do nível pessoal para questões nacionais, o grau de complexidade é exponencialmente ampliado e podemos nos deparar com questões cujo ineditismo nos leva a questionar determinadas posições adotadas por alguns países diante de outros.
Um exemplo bastante atual se refere ao conflito em curso no leste europeu, envolvendo diretamente Rússia e Ucrânia, mas que também apresenta outros atores indiretos quer sejam agentes nacionais, como os Estados Unidos, ou mesmo supranacionais, como a OTAN.
Aliás, especula-se que a própria aliança militar ocidental teria sido um dos motivos que levaram a Rússia a desencadear um ataque ao território ucraniano, em evidente desatenção ao direito internacional e com vistas a consolidar seu domínio sobre a porção oriental do país vizinho.
O manifesto desejo da OTAN de estender sua zona de influência a leste, limitando o raio de ação russo, e a possibilidade da Ucrânia se juntar ao organismo militar que integra países ricos da América do Norte e Europa, podendo comprometer a posse da Crimeia pela Rússia, certamente pesou no complexo processo decisório liderado por Vladimir Putin que, apesar de saber que atrairia sanções de boa parte do mundo, optou por tentar consolidar a posse não apenas a famosa península, onde se encontra há mais de dois séculos a base naval da Esquadra do mar Morto, mas também as regiões de maioria étnica russa que forneceriam suporte logístico para a manutenção da Crimeia como área pertencente a sua nação.
A Rússia participa dos jogos geopolíticos europeus há vários séculos. Disputou com a Inglaterra o domínio sobre regiões pertencentes ao Império Otomano, que já dava sinais de ruína antes mesmo do início da Primeira Guerra Mundial. No tabuleiro do poder global, mantém como objetivo estratégico a ampliação do acesso a mares quentes, que permitam o escoamento de produtos de sua matriz de exportações, composta tanto por itens industrializados, quanto por commodities agrícolas e minerais, extraídos de seu imenso território, mas que se encontra em grande parte sob clima inóspito.
Os russos sabem que para garantir a viabilidade econômica de sua nação, precisam estar em condições de defender a operação dos portos do Mar Negro e ainda manter um fator dissuasório que impeça a Turquia de negar a passagem pelos estreitos do Bósforo e Dardanelos. Para tanto, é fundamental que mantenham a secular base naval de Sebastopol, sede da Esquadra Russa do Mar Morto desde 1783.
O impasse gerado por interesses tão complexos levaram a Europa mais uma vez a uma guerra, cujas consequências ainda não podem ser medidas, mas que ameaçam a paz mundial pois tem o potencial de gerar um conflito entre as nações com maior poder bélico do planeta.
A capacidade de planejamento aprimorada por séculos de disputas e conflitos, contudo, não se faz presente exclusivamente nas atividades bélicas. Mesmo envolvida em uma guerra na qual enfrenta um inimigo apoiado por diversas forças tecnologicamente dominantes, a Rússia não deixa de planejar outras ações que possam lhe garantir vantagens estratégicas em campos menos drásticos que o militar.
Em estudo recente, setores governamentais projetaram entre 500 mil e um milhão a quantidade de vagas a serem completadas por profissionais de Tecnologia da Informação e Inteligência Artificial para que a Rússia esteja em condições de fazer frente aos desenvolvimentos tecnológicos das próximas décadas.
De posse desse diagnóstico, foi lançado um programa governamental denominado Economia Digital que prevê a formação imediata de 200 mil jovens russos em habilidades e competências ligadas à tecnologia, com cursos específicos para adolescentes e jovens já a partir do 7º ano de ensino (aproximadamente 13 anos de idade).
Estão previstos nesse programa algumas ações como:
– remoção de barreiras à economia digital, possibilitando o desenvolvimento de tecnologias modernas em áreas de grande demanda;
– desenvolvimento da estrutura de comunicações e expansão do acesso à internet em áreas pouco povoadas;
– melhoria do sistema educacional, propiciando acesso à cultura digital e o domínio de competências de Tecnologia da Informação;
– estímulo ao desenvolvimento de tecnologias digitais autóctones, reduzindo a dependência de produtos estrangeiros;
– universalização do emprego de tecnologias digitais e uso de plataformas no oferecimento de serviços públicos.
Uma das ações do Projeto Economia Digital, se denomina “Código do Futuro” e constitui um projeto educativo único, que está sendo implementado aos alunos a partir do 8º ano. Nessa ação, os adolescentes podem aprender linguagens de programação modernas gratuitamente. O projeto começou no outono de 2022 e rapidamente ganhou popularidade. Durante esse período, 130.000 crianças já se inscreveram nos cursos e começaram a estudar.
Para ter acesso ao programa, o aluno deve passar em um teste de admissão, estudar por conta própria os temas do Módulo I e prestar um novo teste para avaliar o progresso dos estudos.
Apenas após demonstrar aptidão nessas duas verificações de conhecimentos e de acordo com seus méritos, os alunos serão matriculados nos cursos específicos, a partir do Módulo II. Se o investimento na educação tecnológica com base no mérito intelectual e na liberdade de operar a economia digital der certo e a Rússia conseguir formar o número necessário de profissionais para o desenvolvimento de uma competente tecnologia digital e inteligência artificial, é possível que em gerações futuras o país não precise mais se envolver em guerras para garantir sua viabilidade econômica ou, na pior das hipóteses, desenvolverá formas eficientes de vencê-las.
Políticas públicas escolhidas com escopo num plano nacional estratégico e bélico de longo prazo. Difícil de ser implementado num país latino, por exemplo. Estamos ocupados demais conflagrados pela mentalidade revolucionária, que nunca está satisfeita em multiplicar pobreza e desgraça. Não que o utilitarismo russo seja o exemplo ideal a ser seguido, mas nem com estas questões básicas podemos sonhar.
E isso não é por sermos latinos, mas por termos uma formação sociológica insolidarista, como analisaram Oliveira Vianna, Tobias Barreto, Capistrano de Abreu, Sérgio Buarque de Holanda e outros autores, compendiados e comentados por Evaristo de Moraes Filho no último capítulo de “O problema do sindicato único no Brasil”. Isso é corrigível através do fomento a instituição de solidariedade social, pelas quais surgem reflexos em todas as esferas do país. Recomendo ainda a leitura de “Populações meridionais do Brasil”, de Oliveira Vianna.