Por Márcio Amaro
Resumo
O presente trabalho se propõe a realizar uma análise da evolução do pensamento econômico a partir do fim do Antigo Regime e a validade de pressupostos basilares de estruturas políticas estabelecidas a partir do século XVIII, frente aos desafios impostos pela modernidade, caracterizada por rápidos avanços tecnológicos e constantes alterações de paradigmas. Serão abordados também os embasamentos teóricos evidenciados por diferentes pensadores, assim como a aplicabilidade de seus estudos nas sociedades deste princípio de século XXI. A contraposição entre as diferentes correntes do pensamento econômico de sociedades modernas, relacionadas aos pressupostos político-sociais que sustentam teorias absolutas acerca da condução destes mesmos aspectos, tem se mostrado um dos mais importantes fatores de atrito social, tendo motivado, ao longo do século XX, diversas revoltas, revoluções, guerras e instabilidades políticas que mobilizaram recursos financeiros e humanos em verdadeiros morticínios de dimensões nunca vistas na história. Apesar de transcorridos mais de dois séculos desde o surgimento das primeiras teorias político-econômicas com vistas à contemporaneidade, ainda não se percebe consenso sobre qual a forma mais justa de organização da sociedade a fim de viabilizar seu desenvolvimento contínuo, sustentável e equânime. Em linhas gerais, os modelos aplicados tendem a variar em níveis distintos e inversamente proporcionais entre dois valores absolutos propostos pelo marco fundador da contemporaneidade: a Liberdade e a Igualdade. Ambos se constituem em importantes ideais balizadores do desenvolvimento humano, mas são, contudo, mutuamente limitantes, contraditórios e, em amplo espectro, incompatíveis. Na abordagem a esta contradição, respaldaremos nosso trabalho que se fundamenta em pesquisa bibliográfica realizada em fontes escritas disponíveis na rede mundial de computadores (internet) e em livros de autores identificados com o assunto abordado.
Palavras-chave: Socialismo. Capitalismo. Karl Marx. Adam Smith. Liberalismo.
1 INTRODUÇÃO
A definição clássica de Economia relaciona os meios disponíveis e as necessidades, classificadas como crescentes frente a recursos cada vez mais escassos. Ainda que esta seja uma definição imensamente difundida, não abrange de forma satisfatória o complexo arcabouço de questões que cercam as ciências econômicas, suas variantes, suas possibilidades e limitações. Mesmo que sejam agregados ao conceito desta ciência tão debatida ao longo do desenvolvimento humano aspectos atinentes à produção, distribuição e consumo de bens e serviços, ainda assim faltará uma particularidade ao conceito enunciado. Ainda que inespecífico, talvez o enunciado de F.A. Hayek acerca da ciência econômica seja o que mais se aproxima da realidade incerta: “Economia é a ciência que se destina a mostrar aos homens (e governos) o quão pouco sabem sobre aquilo que imaginam poder planejar” (HAYEK – 2017).
O próprio termo “Economia” era estranho ao pensador austríaco que propunha sua substituição por Catalaxia, definida pela forma que o mercado fixa os preços e as taxas de troca em um ambiente de ordem espontânea. Hayek se opunha assim à tradição aristotélica, abordada na obra Ética à Nicômaco (ARISTÓTELES – 2016) segundo a qual a palavra economia se refere tão somente à prática de gestão de um domicílio. Aos processos de gestão de ordem ampliada, caracterizado pela variação de preços em virtude da escassez de bens e serviços, Aristóteles dava o nome de chrematistika, e por eles apresentava profundo desprezo.
O pensamento econômico contemporâneo, contudo, antecede em alguns séculos a maturidade criativa da obra liberal de Hayek, a qual retornaremos oportunamente. O século XVIII representou uma mudança significativa na tradição político-econômica até então vigente, caracterizada pelo poder centralizado nas mãos do rei e pelo mercantilismo interventor e metalista. Enquanto pensadores contratualistas como J.J.Rousseau expressavam a influência do Estado de Natureza na formação das sociedades modernas, sendo que este autor particularmente considerava que “a maioria de nossos males é obra nossa e (…) os teríamos evitado quase todos conservando a maneira de viver simples, uniforme e solitária que nos era prescrita pela natureza” (ROUSSEAU apud LEOPOLDI), outros pensadores do mesmo período acreditavam que não a igualdade selvagem e natural que nos aproximava de animais, mas a liberdade de livremente agir conforme suas potencialidades e seus interesses pessoais é que faria o Homem dominar a natureza e desenvolver uma sociedade mais justa e economicamente viável.
No ano de 1776, enquanto os Estados Unidos da América declaravam sua independência e se consolidavam como uma nação inspirada pelos ideais de liberdade, Adam Smith, economista britânico, publicava sua obra Uma Investigação sobre a Natureza e as Causas da Riqueza das Nações. Neste trabalho, Smith lançou as bases do liberalismo econômico, descrevendo inicialmente as questões relativas à divisão do trabalho, discutindo a acumulação inicial de capital, ideias associadas ao desenvolvimento econômico, ao papel do Estado e sobre a gestão pública. De forma sintética, sua principal contribuição para o desenvolvimento da ciência econômica foi a ideia de que reside no interesse particular a possibilidade de êxito de qualquer empreendimento que busque o sucesso financeiro:
O homem tem necessidade quase constante da ajuda dos semelhantes, e é inútil esperar esta ajuda simplesmente da benevolência alheia. Ele terá maior probabilidade de obter o que quer, se conseguir interessar a seu favor a autoestima dos outros, mostrando-lhes que é vantajoso para eles fazer ou dar aquilo de que ele precisa. É isto o que faz toda pessoa que propõe um negócio a outra. Dê-me aquilo que eu quero, e você terá isto aqui, que você quer – esse é o significado de qualquer oferta desse tipo; e é dessa forma que obtemos uns dos outros a grande maioria dos serviços de que necessitamos. Não é da benevolência do açougueiro, do cervejeiro ou do padeiro que esperamos nosso jantar, mas da consideração que eles têm pelo seu próprio interesse. Dirigimo-nos não à sua humanidade, mas à sua autoestima, e nunca lhes falamos das nossas próprias necessidades, mas das vantagens que advirão para eles. (SMITH, 1996)
Se o ideal de liberdade se constituiu em fonte inspiradora para o trabalho de Smith, a principal oposição ideológica ao seu pensamento, representada pelo filósofo alemão de origem judaica Karl Marx, foi movida pela ideação igualitária cuja exacerbação resultaria na sociedade sem classes e na supressão do próprio Estado. Baseado na dialética hegeliana, Marx desenvolveu sua teoria inspirado em pensadores chamados de socialistas utópicos que, a partir da segunda metade do século XVIII, passaram a idealizar sociedades fundamentadas no valor único do trabalho, independente de sua qualificação, especificação ou qualidade. A unidade básica de valor seria a quantidade de trabalho para a transformação de matéria prima em produto ou na prestação de algum serviço. Teóricos como Saint-Simon, Owen, Fourier entre outros serviram de ponto de partida para o trabalho de Marx cujos objetivos eram bastante complexos como a estruturação de uma nova ciência, a qual denominou como materialismo histórico, a absoluta reformulação das sociedades humanas e a edificação de um novo homem, que baseasse suas relações na supressão de seus interesses particulares em prol da comunidade. Para Marx, “Os filósofos não fizeram mais do que interpretar o mundo de forma diferente; trata-se, porém, de modificá-lo.” (MARX, 1999).
As teorias político-econômicas propostas por Smith e Marx, claramente antagônicas quanto à escolha de um valor fundante para a sociedade contemporânea, e as ideologias que delas derivaram deram causas a inúmeros conflitos internos e externos em diferentes partes do mundo e até hoje geram debates acalorados acerca da melhor forma para a estruturação do Estado moderno.
2 O CAPITALISMO
O Capitalismo, tal como é definido atualmente, não constitui um campo epistemológico cujas implicações empíricas sejam embasadas por teóricos renomados e contrapostas por outros de linha contrária. Na verdade, o Capitalismo é muito mais atacado do que defendido e as duas obras mais conhecidas cujos nomes trazem a palavra “capital” se destinam a destruí-lo e não a realizar uma crítica para melhorá-lo. Este é o caso da mais influente obra de Karl Marx, que, ao invés de ter por nome aquilo que o próprio filósofo propunha, chamando-se “O Socialismo” ou “O Comunismo”, optou por denominá-la O Capital (MARX, 2017). Os aspectos mais relevantes deste marco do pensamento socialista serão abordados oportunamente. A segunda obra relevante a trazer em seu nome a palavra “capital” e que igualmente se destina a atacar o sistema capitalista é muito mais recente e foi produzida por um autor francês ligado ao Partido Socialista da França. Seu nome é Thomas Piketty e seu livro, que se propõe a ser uma releitura de Karl Marx, se chama O Capital no Século XXI (PIKETTY, 2017). Nesta obra o autor se prende muito mais à capacidade do sistema capitalista de concentrar a riqueza nas mãos de poucos e aumentar o nível de desigualdade social. O argumento, ainda que seja um fenômeno verificável ao longo de diversos períodos nas sociedades capitalistas analisadas por Piketty, não resume a real característica do sistema chamado de capitalista.
Aliás, a própria designação do sistema não encerra suas principais características, sendo mais uma vitória de narrativa conquistada por seguidores de Marx e Friedrich Engels, seu companheiro de trabalho e financiador. Já no século XIX, eram considerados capitalistas os proprietários dos meios de produção, ricos empreendedores e decisores dos destinos de grandes quantias de capital. Estas pessoas, normalmente homens ligados aos processos imperialistas ou às atividades industriais, se aproveitavam das melhores oportunidades oferecidas pelas economias de mercado para investirem seus créditos excedentes e conquistarem maiores ganhos, compondo um ciclo de geração de renda e concentração de riqueza. As condições de trabalho oferecidas para os operários e camponeses eram degradantes e totalmente desprovidas de direitos trabalhistas ou previdenciários.
Desta forma, o termo “capitalista” estava associado à propriedade de terras, posse de capital e exploração muitas vezes injusta do trabalho assalariado. Ao realizarem a ligação de todo um sistema econômico com uma palavra que denota riqueza e injustiça, os seguidores do materialismo histórico excluíram a possibilidade lógica de pessoas não detentoras dos meios de produção, ou seja, as classes média e baixa, serem capitalistas ou, em última análise, defenderem o sistema capitalista. É comum vermos pessoas de toadas as classes batendo no peito e gritando que são socialistas, o mesmo não ocorre com relação ao Capitalismo.
A identificação de todo um sistema econômico por intermédio de um termo consignado por oponentes ferrenhos a este sistema e de certa forma pejorativo, contribuiu para o descrédito de toda a ordem espontânea estabelecida pelo desenvolvimento histórico da ciência econômica baseada na livre concorrência, na livre iniciativa, na propriedade privada e no desenvolvimento da sociedade de acordo com o potencial de cada um de seus membros, de acordo com seus méritos e seus esforços.
Em defesa do Capitalismo, Ludwig von Mises, economista austríaco, escreveu seu livro A Mentalidade Anticapitalista em 1956, período em que já eram bastante sentidos os efeitos das disputas ideológicas e mesmo militares entre os Estados Unidos e União Soviética, representando respectivamente os sistemas capitalista e comunista de gestão da economia. Na obra, Mises destaca os resultados do modo de produção capitalista e defende a opinião de que todo o ataque ao modelo por ele representado se deve ao ressentimento e à inveja:
A característica essencial do capitalismo moderno é a produção em massa de mercadorias destinadas ao consumo pelo povo. O resultado é a tendência para uma contínua melhoria no padrão médio de vida, o enriquecimento progressivo de muitos. O capitalismo desproletariza o “homem comum” e o eleva à posição de “burguês”. No mercado de uma sociedade capitalista, o homem comum é o consumidor soberano, aquele que, ao comprar ou ao se abster de comprar, determina em última análise o que deve ser produzido e em que quantidade. Os desfavorecidos que em todas as épocas precedentes da história formavam os bandos de escravos e servos, de indigentes e pedintes, transformaram-se no público comprador por cuja preferência os homens de negócios lutam. Tornaram-se os clientes que estão “sempre com a razão”, os patrões que têm o poder de tornar ricos os fornecedores pobres, e pobres os fornecedores ricos. (MISES, 2015)
O sistema batizado como Capitalismo não surgiu do pensamento organizado ou da vontade racional de um grupo de filósofos ou economistas. Ao contrário disso, foi o resultado natural das relações ancestrais e espontâneas entre as bilhões de pessoas que já existiram no planeta, desde o surgimento da espécie Homo Sapiens. Durante cerca de 300 mil anos essa espécie fisicamente frágil vagou pelo mundo em grupos pequenos, por vezes constituídos exclusivamente por um núcleo familiar. Partindo de algum ponto incerto no centro da África, os Sapiens se valeram se sua única vantagem competitiva para superarem seus predadores e seus concorrentes de mesmo gênero – o intelecto – e se alastraram por todos os cantos da Terra, adaptando a natureza às suas próprias condições de vida. Há cerca de 12 mil anos os Sapiens perceberam que podiam dominar técnicas de reprodução de plantas e domesticar animais, passando da situação de coletores e caçadores para o estágio de pastores e agricultores. Segundo Engels, em seu livro Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado (ENGELS, 1984), deixavam o estágio selvagem de desenvolvimento e se elevavam à barbárie.
Mas os Sapiens não parariam neste estágio. O desenvolvimento da agricultura e da pecuária finalmente garantia a capacidade de organização e previsibilidade e os livrava das provações que a escassez constante dos tempos de caçadores e coletores lhes impunha. O homem primitivo pôde finalmente estabelecer abrigos permanentes, abandonou o nomadismo e passou a conviver em grupos maiores, aumentando sua capacidade de proteção e o potencial de alimentação de sua prole, respaldado pelo trabalho de um número cada vez maior de indivíduos.
A lenta evolução do estágio de barbárie, o crescimento das populações, o aumento da complexidade dos grupos humanos e a necessidade de uma regulamentação que harmonizasse ou pelo menos reduzisse os atritos entre diferentes interesses levou o Sapiens a empreender sistemas mais complexos de convívio, surgindo a civilização. Este último estágio da evolução humana se caracteriza pelo surgimento das cidades, do Estado e da propriedade separada de bens. O Estado é investido da autoridade de regular, por intermédio da ação coercitiva, as relações entre os indivíduos e o respeito às normas estabelecidas.
Segundo F.A.Hayek, em seu livro Os Erros Fatais do Socialismo (HAYEK, 2017), o estágio de civilização e o incremento vertiginoso no número de indivíduos que ele propiciou, alterou significativamente as relações entre os membros dos grupos que, outrora limitados ao núcleo familiar ou a grupos pouco maiores como clã e tribo, eram submetidos a valores de solidariedade absoluta e altruísmo. A ordem ampliada decorrente da civilização exigiu que os sentimentos atávicos e instintivos fossem gradualmente substituídos por condutas aprendidas que levariam os humanos a decidirem os melhores caminhos para a ampliação constante dos grupos. Essas condutas aprendidas seriam fruto das relações espontâneas e colaborativas entre os membros das sociedades, em gradual e crescente especialização de tarefas, conforme as estruturas sociais iam se sofisticando. Hayek ainda afirma:
Se aplicássemos sempre, inalteradas e irrestritas, as regras do microcosmos (isto é, o pequeno grupo ou horda, ou digamos, nossa família) ao macrocosmo (nossa civilização global), como nossos instintos e anseios sentimentais nos incitam, com frequência que desejemos, nós o destruiríamos. Contudo, sempre que aplicássemos as regras da ordem ampliada aos nossos grupamentos mais íntimos, nós o destruiríamos… acredito que uma aspiração atávica à vida do nobre selvagem seja a principal fonte da tradição coletivista. (HAYEK, 2017).
A evolução das sociedades, a divisão do trabalho e as recompensas naturais a que a dedicação e o mérito estão sujeitos levaram os humanos à implementação de um conceito essencial para a ordem ampliada: a propriedade separada. A partir deste momento, foram desenvolvidos conceitos até então impossíveis de serem pensados pelas comunidades primitivas, como os mercados, a regulação dos interesses produtivos por parte dos indicadores de preços, as interações entre diferentes comunidades, o sincretismo entre culturas e uma série de transformações de costumes e atividades que, sendo resultado dos mais variados contatos entre bilhões de pessoas que colaboraram espontaneamente com indivíduos deslocados no tempo e no espaço, nunca foram fruto da vontade expressa de um pensador, de uma autoridade, nem mesmo de um grupo de técnicos administradores.
Dessa forma, baseado nas relações espontâneas e ancestrais que foram sendo escolhidas pelos nossos antepassados em suas relações com a natureza e a consequente evolução social possibilitada pela ordem ampliada e pela propriedade separada, surgiu o Capitalismo, assim batizado por seus mais ferrenhos detratores. O termo poderia ser mais próximo da realidade se substituído por Economia de Mercado, mas seu valor fundante é, sem dúvida a liberdade de produzir e viver segundo o fruto de seu trabalho. Nem todas as sociedades evoluíram igualmente na implantação das etapas que conduziram algumas comunidades, hoje identificadas com certos Estados Nacionais, ao desenvolvimento capitalista. Ainda hoje encontramos sociedades que não evoluíram do estágio selvagem. Outras há pouco foram lançadas à civilização por intermédio de ações imperialistas de nações desenvolvidas. O imperialismo e a guerra foram fenômenos constantemente percebidos no desenvolvimento das relações entre diferentes grupos, inicialmente étnicos e, nos tempos contemporâneos, nacionais. Os desequilíbrios no desenvolvimento capitalista, a concentração de rendas e as perturbações sociais geradas pela constante busca de melhores fluxos de capitais serão os motivos principais dos ataques sofridos pelo sistema, sobretudo realizados por comunistas.
3 O COMUNISMO / SOCIALISMO
As teorias clássicas de diversos autores, particularmente a complexa obra de Karl Marx, não fazem qualquer distinção entre os termos socialismo e comunismo, os empregando indistintamente, como sinônimos. O próprio Marx ora se declarava socialista, ora comunista, como na elaboração de seu famoso manifesto e, por vezes, ainda se definia como social-democrata. Empregaremos, no presente trabalho, os termos socialismo e comunismo como portadores da mesma mensagem, por entendermos ser essa a postura dos principais autores sobre o tema, ainda que, didaticamente, muitas vezes o socialismo seja abordado como uma fase precursora da sociedade comunal, na qual vigoraria a ditadura do proletariado, representada por um Estado monopolizador dos meios de produção e desempenhando a tarefa de eterno sacidor das demandas sociais. De acordo com essa abordagem, o comunismo seria a fase última do desenvolvimento marxista, quando vigoraria a suprema igualdade e todos os humanos viveriam irmanados em uma sociedade universal, sem classes, sem Estado e sem diferenças quaisquer.
Não é, e nem poderia ser, objetivo deste trabalho analisar integralmente a visão política de Karl Marx e de seu companheiro e financiador Friedrich Engels. É possível afirmar, porém, que a busca por uma sociedade igualitária é anterior ao trabalho destes pensadores alemães. Ao publicarem o Manifesto Comunista de 1848, Marx e Engels puderam contar inclusive com algumas experiências práticas implementadas por antecessores. Segundo Michael Newman, destacaram-se neste contexto autores como Henri Saint-Simon (1760-1825), Charles Fourier (1772-1837) e Robert Owen (1771-1858), que passaram para a História sob o epíteto de Socialistas Utópicos (NEWMAN, 2005).
Uma diferença significativa entre os utópicos e Marx, porém, é que, enquanto aqueles pensavam no estabelecimento de pequenos grupos vivendo da exploração exclusiva do trabalho comunitário e da repartição equânime dos frutos desse trabalho, Marx extrapolou este pensamento e concebeu o mundo inteiro sob a ótica igualitarista, em uma sociedade sem classes e sem Estado, onde todos tivessem os mesmos recursos e o povo fosse proprietário dos meios de produção. Antes de se atingir este nível de organização social, porém, seria necessário investir em um Estado poderoso, sob o comando dos representantes do povo, que dirigiriam a economia de forma absolutamente centralizada, abolindo a propriedade privada e a livre iniciativa. A fim de estabelecer este sistema, que elevava o princípio de igualdade acima da mínima noção de liberdade, seria necessário instaurar inicialmente uma ditadura do proletariado, partindo de uma revolução contra a classe burguesa opressora que mantinha operários e camponeses sob o jugo constante da opressão, condenados à pobreza crônica.
No Brasil, cerca de um século após a morte de Marx, um famoso pedagogo, patrono da educação brasileira, expressou o seguinte pensamento, baseado nas ideias de Marx: “A revolução é biófila, é geradora de vidas, mesmo que para isso tenha que deter vidas. Não há vida sem morte”. (FREIRE, 1979).
O flagelo da violência e a ruptura com a ordem social sempre estiveram na gênese da ideologia marxista que justifica a necessidade destes pressupostos a fim de romper a imposição, por parte de uma elite sempre gananciosa, injusta e exploradora, de uma superestrutura vigente, que mantém operários e camponeses condenados a uma vida de trabalho extenuante e pouco acesso a recursos advindos do próprio trabalho.
Karl Marx nasceu em 1818, na Prússia, antes, portanto, da unificação alemã, e morreu em 1883, em Londres, como apátrida. Em seus 64 anos de vida produziu uma série de obras de cunho filosófico, histórico, político e econômico, sempre com o viés de respaldar em teoria aquilo que propunha como prática, já definida em seus escritos, na chamada tese 11 de Feuerbach: mudar o mundo!
A vida de Marx se centrou em sua produção intelectual, sempre apoiado por seu companheiro e financiador Friedrich Engels. Ainda jovem, Marx se casou com Jenny von Westphalia, filha de um nobre prussiano, que rejeitava a união entre sua filha e o filósofo. Juntos, Karl e Jenny tiveram sete filhos, dos quais quatro morreram em virtude das péssimas condições de subsistência que seu pai lhes impunha. Marx teria tido ainda um oitavo filho com sua empregada doméstica, solicitando a Engels, rico industrial, que assumisse a paternidade. A criança acabou cedida para uma família de proletários. Estes homens redigiram códigos de conduta, pressupostos morais e elaboraram racionalmente um sistema político-econômico que foi responsável direto pela morte de mais de 100 milhões de pessoas durante os séculos XX e XXI.
Em 1848, diante das revoltas que dominavam a Europa, Marx e Engels escreveram em conjunto o Manifesto Comunista, documento fundante de sua ideologia, onde exortam os trabalhadores do mundo à união, atacam as estruturas da sociedade burguesa e lançam as bases do que chamariam de Materialismo Histórico, a ciência criada por Marx para a redenção dos povos, fundamentada na luta de classes, na tendência de acúmulo de capitais por parte da burguesia, na exploração injusta do trabalho assalariado e na necessidade dos proletariados se tornarem a classe dominante através da expropriação do capital privado, sendo este entregue ao Estado regido pela ditadura do proletariado. No decorrer do processo civilizatório proposto por estes filósofos, o Estado seria finalmente abolido e o mundo igualitário, sem Estado, sem propriedade privada, sem guerras e sem qualquer tipo de antagonismo, triunfaria soberano para a alegria e redenção de todos os povos:
A condição essencial da existência e da supremacia da classe burguesa é a acumulação da riqueza na mão dos particulares, a formação e o crescimento do capital; a condição de existência do capital é o trabalho assalariado. Este baseia-se exclusivamente na concorrência dos operários entre si. O progresso da indústria, de que a burguesia é agente passivo e inconsciente, substitui o isolamento dos operários, resultante de sua competição, por sua união revolucionária mediante a associação. Assim, o desenvolvimento da grande indústria socava o terreno em que a burguesia assentou seu regime de produção e de apropriação dos produtos. A burguesia produz, sobretudo, seus próprios coveiros. (MARX e ENGELS, 1956).
O pensamento de Marx foi fortemente influenciado por Georg W. F. Hegel, seu professor na Universidade de Berlim. Hegel é considerado um dos mais influentes teóricos do pensamento de toda a história. Suas teorias complexas podem ser interpretadas de inúmeras formas, mas a importância exacerbada que o filósofo atribuiu ao Estado, ofereceu um dos principais fundamentos para os regimes totalitários do século XX, como o comunismo de Marx e o nazismo de Hitler. A análise que Hegel realizou da revolução francesa, evento pelo qual tinha certa fascinação, ajudou a criar o mito revolucionário de Marx, assim como a dialética hegeliana resultou na crença utópica de que o conflito entre duas classes sociais resultaria em um mundo destituído de classes onde tudo seria produzido “por cada um conforme suas capacidades, para cada um segundo suas necessidades”. Ainda que este pensamento, baseado na igualdade absoluta, suprima da natureza humana a possibilidade do interesse individual, subordinando-o eternamente ao coletivismo e renegando o ideal igualmente procurado de liberdade, ainda hoje vemos certos países e alguns movimentos políticos orientarem seus posicionamentos por linhas ideológicas que, embora testadas, nunca resultaram em benefícios diretos para as sociedades nas quais a economia de mercado tenha sido sistematicamente substituída pelo centralismo estatal absoluto.
O americano Matthew White (WHITE, 2013, p. 632) escreveu acerca dos cem maiores morticínios sobre os quais a História nos fornece dados concretos ou estimativas confiáveis. Segundo o autor, apenas a Segunda Guerra Mundial supera em número de mortes os crimes de Mao Tse Tung. O fato é particularmente agravado em função de que, naquela guerra, morreram pessoas de diversas nacionalidades, mortas por inimigos estrangeiros. Nas ações de Mao, majoritariamente, chineses morreram nas mãos de chineses. Ainda segundo White, enquanto as mortes de 40 milhões de pessoas deveriam pesar na consciência dos admiradores de Mao, Stalin se mostrou bastante mais ameno, podendo ser responsabilizado por 20 milhões de assassinatos. Ainda assim, Stalin é o quarto maior genocida na história, atrás apenas de Hitler, Gêngis Khan e do próprio Mao Tse Tung. A implantação do comunismo no Camboja, em números brutos foi aparentemente menos sanguinária, mas em números relativos o Khmer Vermelho e seu líder Pol Pot foram responsáveis pela morte de um em cada cinco cambojanos. A ditadura cubana não foi diferente no quesito violência durante a implantação do comunismo. Ainda que haja discrepância de números em virtude de ausência de dados oficiais e inexistência de liberdade de expressão na ilha, estimativas variam entre 7.500 e 17.000 fuzilamentos, muitas vezes conduzidos por Fidel Castro ou Che Guevara. Os mortos pelo regime cubano excluem as dezenas de milhares de vidas perdidas nos naufrágios de barcos improvisados com destino a Miami, de pessoas que tentavam fugir do paraíso socialista.
Mas não apenas a morte por violência direta é consequência contumaz de regimes socialistas. A desagregação social, a fome e a pobreza também acompanham as sociedades que se lançam nas aventuras coletivistas idealizadas por Karl Marx. As diversas experiências de implementação do comunismo resultaram em retumbante fracasso, não apenas em economias agrárias como a Rússia de 1917, passando pela Alemanha Oriental, curiosamente chamada de República Democrática Alemã, e finalmente chegando à Venezuela de 2019, onde a implementação do chamado socialismo bolivariano levou o país detentor da maior reserva de petróleo do mundo à violência, pobreza e fuga de mais de 10 por cento de sua população, criando na América do Sul a figura pouco comum no subcontinente de refugiados políticos.
O comunismo não se baseia apenas em erros de interpretação do pensamento filosófico de diversos autores e na atribuição à espécie humana de características que ela não possui. O comunismo é, sobretudo, uma impossibilidade econômica. Ainda que Marx tenha realizado seu mestrado focado nas posições materialistas de Demócrito, e mesmo que tenha denominado a ciência que pretendeu criar de Materialismo Histórico, não é possível classificar sua obra como materialista, ou seja, fundamentada na realidade material. Marx defende a tese de que a evolução das sociedades se baseou na luta entre as classes dominantes e dominadas em cada período histórico. As condições precárias em que viviam os trabalhadores no início do capitalismo industrial, a expansão imperialista, as sucessivas crises econômicas experimentadas pelo sistema capitalista e o incremento significativo de uma classe operária descontente, faziam com que o filósofo acreditasse na extinção da burguesia por ação efetiva e revolucionária dos proletários. Algo que nunca ocorreu e que está cada vez menos provável que aconteça, pelo menos nas sociedades mais desenvolvidas, onde realmente exista uma estrutura econômica baseada no livre mercado. Marx acreditava também no mito do Bom Selvagem, que surgiu por intermédio do contato dos europeus com os povos indígenas americanos, a partir de 1492, mas que foi popularizado pela obra de J.J. Rousseau. A interpretação adotada por Marx da dialética hegeliana também esteve liga à crença de que o Estado deve ser supremo no atendimento das necessidades dos cidadãos, ainda que para o marxismo clássico, em algum momento este Estado todo-poderoso deveria ser abolido. Como e quando isso aconteceria, nunca foi explicado na extensa e complexa obra de Marx, nem de seus sucessivos herdeiros intelectuais cujas releituras igualmente os aproximam da fé em uma ideologia inacabada e utópica e os afastam do materialismo que pretendiam caracterizar.
Dentre essas releituras, as que apresentaram maiores consequências para o espectro político atual foram aquelas realizadas pelos teóricos da Escola de Frankfurt. Este movimento, composto inicialmente por jovens alemães de origens judaicas na década de 20 do século passado, propôs uma forma de interpretar os ensinamentos de Marx, criando alternativas para adequar a teoria e práxis marxista aos avanços sociais possibilitados pela evolução das sociedades burguesas durante o século XX. A Escola de Frankfurt, cujo nome apenas se tornou reconhecido a partir da década de 50, representou uma sobrevida ao marxismo, francamente em decadência após a percepção por parte dos europeus do estabelecimento de uma ditadura policialesca e assassina por parte da União Soviética. Os mais destacados membros desta escola, dentre os quais se destacaram Max Horkheimer, Theodor W. Adorno, Herbert Marcuse e Erich Fromm, constantemente citado por Paulo Freire em sua obra A Pedagogia dos Oprimidos (FREIRE, 1979). A estes pensadores coube realizar uma revalidação dos escritos de Marx, destacando os pontos válidos para o século XX e a sociedade que se apresentava, com a perda gradual de importância econômica de empreendimentos fabris, a inclusão das classes trabalhadoras no ciclo econômico por intermédio de uma capacidade de consumo crescente e a satisfação da maior parte dos operários com o nível de vida conquistado e pelos direitos trabalhistas garantidos pelos governos de cunho representativo. A fim de possibilitar essa análise, os membros da Escola foram chamados a promover a interpretação de autores como Immanuel Kant, Georg Wilhelm Hegel, Karl Marx, Sigmund Freud, Georg Simmel, Georg Lukács e, sobretudo, Max Weber.
A reinterpretação das ideias originais de Karl Marx representou um abalo na ortodoxia do pensamento socialista. Novas abordagens foram realizadas, por intermédio da chamada teoria crítica, que visava estender os conceitos que Marx havia centrado nos trabalhadores para outros campos, incluindo estudos em Sociologia, Comunicação Social, Filosofia e Psicanálise. Perceberam que as lutas pelo domínio da sociedade não poderiam mais ser exclusivamente no mundo do trabalho, mas nos setores acadêmicos e culturais.
Iniciava com a Escola de Frankfurt um novo tipo de disputa: a guerra de narrativas e a busca pelo domínio cultural, incluindo grupos identitários considerados excluídos dos antigos embates políticos, como mulheres, homossexuais, minorias étnicas e religiosas e, mais recentemente, ativistas ambientais. Esse é o ponto em que nos encontramos.
4 O LIBERALISMO E O NEOLIBERALISMO
Ao desavisado, pode parecer que o Neoliberalismo seja uma nova abordagem metodológica que revisitou o Liberalismo Clássico defendido por Adam Smith em sua icônica obra conhecida como A Riqueza das Nações, mas esta visão não corresponde à realidade. Nenhum autor, filósofo, pensador ou economista irá se qualificar como neoliberal. Esta é mais uma vitória de narrativa do pensamento que tradicionalmente classificamos como “de esquerda”. O Neoliberalismo não existe como uma corrente do pensamento e o surgimento do termo está associado a grupos políticos sul-americanos que qualificaram as políticas econômicas chilenas, pós Allende, implementadas pelo ditador General Augusto Pinochet, como prejudiciais para a população pobre do Chile e, de forma pejorativa, as qualificaram como neoliberais. A partir daí o termo tomou uma conotação mais ampla através de sua associação às políticas adotadas pelo Presidente americano Ronald Reagan e pela Primeira Ministra britânica Margaret Tatcher.
Já o Liberalismo, por sua vez, se constituiu através de uma série de axiomas e teses baseadas em verificações empíricas que se traduzem em políticas econômicas fundamentadas nas leis de auto-regulamentação, segundo as quais o mercado tende a um equilíbrio ótimo nas relações de consumo, definido pela oferta e procura de diferentes produtos e serviços. Assim se daria, segundo Mises, a transformação do homem comum em burguês, como já citado, pois o conjunto das decisões individuais dos componentes do mercado consumidor, definiria as principais características da produção, indicando o que seria produzido, em que quantidade e para atender as demandas de qual público alvo, através principalmente dos indicadores de preço e do valor individual que cada agente consumidor desejasse livremente atribuir a atributos como qualidade, exclusividade, confiabilidade, comodidade, entre outros.
Opondo-se radicalmente aos preceitos que regem as sociedades comunais, o Liberalismo acredita que o princípio maior a impulsionar o progresso seja a liberdade dos indivíduos em conquistarem seus recursos através de ações produtivas justas e poderem dispor deles da forma que melhor lhes convir, com a mínima intervenção possível do Estado, ao qual caberia fundamentalmente regular e assegurar as relações sociais, detendo, para tanto, o monopólio do exercício legal da força.
Como abordado, as ideias que inauguraram o pensamento liberal surgiram principalmente a partir do trabalho de Adam Smith ao final do século XVIII, e se opunham ao mercantilismo vigente. Pelo menos um preceito de Smith, contudo, estava fundamentalmente errado. A teoria do valor-trabalho, difundida na Riqueza das Nações e utilizada como base para Marx desenvolver sua tese da mais-valia, não é modernamente aceita, por motivos evidentes. Podemos resumir esta teoria como sendo o trabalho a única forma de definir o valor de um bem e seu correspondente preço. Assim, um diamante seria mais valioso que um copo d’água em virtude da cadeia produtiva de um diamante, desde sua extração, lapidação e venda, ser muito mais agregada de trabalho que simplesmente colocar água em um copo. Contudo, basta nos imaginar quatro dias sob o sol escaldante do deserto, desprovido de qualquer recurso, para termos a certeza que, em determinadas situações, um copo d’água terá um valor muito maior que um diamante. Desta forma, não apenas o uso, a capacidade de troca ou a quantidade de trabalho agregado serão variáveis definidoras do valor de um bem, mas sim a quantidade de recursos que determinado consumidor estará disposto a mobilizar para suprir sua necessidade ou desejo por este bem. Não será, portanto, apenas o trabalho que determinará o preço, mas fundamentalmente a liberdade do consumidor em definir, por critérios próprios, a utilidade que seus desejos de consumo terão mediante seus recursos escassos. Este conceito, atrelado à ideia de Utilidade Marginal, reformulou não apenas a visão da economia liberal como derrubou o principal castelo de cartas sobre o qual se assenta a teoria marxista: se o trabalhador tudo produz, a ele tudo pertence.
As teorias liberais evoluíram no tempo, assim como o pensamento marxista, mas, ao contrário dos ideais igualitários, sempre fundamentadas no valor da liberdade. Os críticos do Liberalismo afirmam que suas práticas, regidas pelo mérito individual e focadas nos interesses particulares, acabam por aumentar a desigualdade, ocorrendo um acúmulo de riqueza nos níveis mais elevados da pirâmide social, enquanto a base desta pirâmide perde recursos. Este argumento é parcialmente verdadeiro. É evidente que, ao vincularmos a disponibilidade de recursos disponíveis à capacidade individual de geração de riqueza, atentaremos contra a igualdade, à medida que cada um dos seres humanos seja desigual em capacidades e interesses. Mas a produção de riqueza não é uma soma de resultado zero, ou seja, para que alguém ganhe, não é necessário que alguém perca recursos. Aliás, é exatamente o contrário disso que ocorre nas sociedades liberais desenvolvidas cujos governos exercem uma ação reguladora eficiente através, por exemplo, da função distributiva de impostos progressivos.
Nestes sistemas, toda a sociedade aumenta seus níveis de riqueza e, ainda que os ricos fiquem mais ricos, detendo um percentual maior de capitais, bens e serviços, os pobres melhoram significativamente sua qualidade de vida. O afeto violado por uma sociedade na qual todos melhoram, mesmo que alguns detenham uma variação maior de riqueza, não é a igualdade, mas a inveja, como afirma John Rawls em sua obra Uma Teoria da Justiça:
Invejamos as pessoas cuja situação é superior à nossa, e estamos dispostos a privá-los de seus maiores benefícios mesmo que para isso seja necessário renunciarmos a alguma coisa. Quando os outros estão conscientes de nossa inveja, podem tornar-se ciumentos de sua melhor situação e ansiosos para tomar precauções contra os atos hostis para os quais nos inclina nossa inveja. Entendida desse modo, a inveja é coletivamente desvantajosa: o indivíduo que inveja um outro está disposto a fazer coisas que pioram a situação dos dois, contanto que se reduza a discrepância entre ambos. (RAWLS, 2000)
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O estudo dos sistemas político-econômicos implementados pela vontade humana desde o advento da civilização nos permite afirmar que não houve ainda a aplicação de nenhum conjunto de normas totalmente justas, que tenha atendido de forma absoluta a cada uma das demandas fundamentadas em valores aceitos por todos os membros de uma sociedade. Aliás, a busca por esse ideal fica muito dificultada por não haver nem mesmo um consenso no significado de justiça. Há cerca de 2.500 anos, Platão, em sua obra a República (PLATÃO, 2011), definia que justiça seria a posse e o uso do que é próprio de cada um, evidenciando que o pensamento fundante da cultura ocidental está ligado à propriedade separada e ao uso livre dos bens que cada indivíduo dispõe.
Mesmo que não possamos classificar nenhum modelo adotado como totalmente justo, podemos quantificar os resultados daqueles que foram mais eficazes na geração de bem-estar para um maior número de pessoas, assim como aqueles que foram menos letais na condução de suas políticas. É possível tecer uma série de críticas às consequências da Revolução Industrial, mas é inegável que o acesso a bens e serviços do trabalhador médio da atualidade supera em muito àquele apresentado por nobres e membros da elite econômica de três séculos atrás. São progressos igualmente inegáveis o acesso generalizado à saúde, à tecnologia e a meios mais eficientes de locomoção na maior parte das sociedades modernas, também frutos da revolução científica surgida com a modernidade. O homem moderno vive mais, de forma mais confortável, com mais garantias e precisando dedicar uma parte menor de seu tempo às lides laborativas. Reconhecer estes avanços é também reconhecer que a defesa da volta ao estado de natureza ou o culto da vida selvagem são atitudes que renegam os benefícios advindos com o avanço possibilitado pela interação espontânea e colaborativa que diversas gerações empreenderam em mais de 300 mil anos, desde o surgimento da espécie.
Esta interação, que possibilitou a formação da realidade ampliada e o crescimento constante do número de indivíduos, garante atualmente o acesso a um elevado número de bens e serviços e o estabelecimento de inúmeras cadeias produtivas espalhadas no tempo e no espaço, propiciando a manutenção dos meios de subsistência a bilhões de pessoas no planeta, que oferecem parcelas de seu trabalho a consumidores que nunca teriam a possibilidade de conhecer.
Este sistema complexo e baseado no somatório livre e autônomo das vontades experimentadas de todos aqueles que nos antecederam tem a possibilidade de compilar um número infinito de informações a partir de condutas adotadas nos mais variados momentos da história humana e diante das mais distintas condições. Qualquer sistema racionalmente elaborado por um indivíduo, uma dupla de pensadores ou mesmo por um conjunto enorme de intelectuais extremamente capacitados, jamais teria condições de emular, controlar, reproduzir ou consolidar o conhecimento espontâneo formado através de gerações e disponibilizado pela tradição, que seleciona os benefícios de decisões passadas e preserva condutas moralmente justas.
Ainda que o sistema resultante dessas escolhas tradicionais, chamado de Capitalismo, modelado por sua vertente econômica mais comum, o Liberalismo, tenha apresentado momentos cruéis em sua evolução, submetendo classes trabalhadoras a condições degradantes, impondo políticas imperialistas contra povos menos desenvolvidos em busca de matérias primas e fomentando a eclosão de conflitos bélicos de magnitudes nunca vistas, seu desenvolvimento em nações organizadas, cujas instituições exerçam ações de freios e contrapesos a fim de tornar mais justas as relações entre capital e trabalho, possibilitou o acesso aos confortos gerados pelo progresso a um grande número de pessoas e se propõe a garantir os recursos mínimos de sobrevivência digna para aqueles que ainda não conseguiram a inserção adequada na ordem social vigente.
Com relação ao socialismo, pode-se concluir que a tentativa de promover um conceito econômico universal mediante o uso racional do intelecto não surtiu o resultado de justiça esperado pelos teóricos que, mesmo dotados de grande boa vontade, foram incapazes de consolidar conquistas de bem-estar sustentáveis no tempo. Sua possível boa intenção pode ser resumida por Ludwig von Mises:
A ideia de socialismo é a um tempo grandiosa e simples… Podemos dizer, em verdade, que é uma das mais ambiciosas criações do espírito humano… tão magnífica, tão ousada, que incitou, com motivo, a maior das admirações. Se quisermos salvar o mundo da barbárie, não podemos dispensá-lo com negligência, mas precisamos refutá-lo. (MISES apud HAYEK, 2017).